Poema datado

José Tadeu Gobbi
4 min readMar 25, 2024

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Photo by Joshua Sortino on Unsplash

Dobre a esquerda e cada músculo do teu corpo irá doer.

Esqueça este papo de visão inspiradora,
mantenha seu smartphone ligado, tire fotos, grave vídeos,
registre sons, compartilhe mensagens,
use todas as funcionalidades.

Você está entrando em um ambiente controlado,
teu rosto foi esquadrinhado por câmeras
com inteligência artificial e reconhecimento facial,
teu jeito de andar, características do teu corpo
tua roupa, tudo foi mapeado, processado
e catalogado. Você está vulnerável.

Nesta interface tua vida é um imenso database
controlado por algoritmos.
Na Rua W você é um lead que, em décimos de segundos,
é leiloado por uma adexchange e vendido pela melhor oferta.

Você é o escravo moderno,
não precisa dormir na senzala
nem sofrer castigos físicos.
Um escravo reprogramado,
bem cuidado, valorizado.

A comida que você gosta,
a cor de sua preferência,
e o time que você torce
são registros valiosos processados por big data.

Você clicou imagens de mulheres morenas,
criticou o Papa,
se interessa por lugares como a Polinésia Francesa e
prefere vinho branco e comidas leves,
apoia ideias liberais e questiona valores religiosos.

Prazer em te conhecer
na Rua W, você é parte de um gigantesco ecossistema.

Você é um homem livre que trabalha
e é mantido com uma baixa capacidade de reflexão
para não perceber a inteligência por trás do sistema,
não entender porque comprou tantas roupas,
este monte de relógios,
ou esta meia dúzia de óculos de sol que você nunca usa.

Ou, qual a necessidade de
ter os mais modernos dispositivos
para se manter conectado 24h por dia.
Você pode ir aonde quiser, quando quiser,
pode escolher a mulher da tua vida,
ter quantos filhos quiser,
viajar, e vez ou outra tomar um porre.

Besteira imaginar que teus desejos importam.
Teus desejos são programados,
tudo à sua volta é aderente a um lifestyle
que você imagina ter conquistado,
mas que foi construído e orientado para te dar uma sensação
de autonomia, de poder.

Tua vontade não é autônoma:
está condicionada a um papel que você tem que exercer,
um script que o business intelligence processou
e que, através de análise preditiva, antecipa teus desejos,
prevê seu comportamento,
e te oferece novos bens cuja posse
constrói a persona que você quer ser.

Teu cartão de crédito mostra tua vida em livro aberto:
onde você estava às 13h da sexta-feira
do dia 21, onde você almoçou,
e o seu padrão de consumo de produtos e serviços.

Teu smartphone dá sua geolocalização em tempo real,
dia, hora, local, bairro, o prédio no qual você entrou,
sua velocidade de deslocamento, tua rotina diária,
aonde você dorme e aonde trabalha.

Teu laptop denuncia tua conexão,
sua navegação na rede, o que você acessa,
quais páginas frequenta, que tipo de conteúdo te atrai,
como você interage, com quem,
e quando você imagina que está exercendo sua liberdade
de expressão, você está fornecendo novos insigths
que através da websemântica entregam,
sem que você peça, conexões incríveis com o que você gosta.

Você cumpre uma jornada e imagina
que o carro que você gosta foi escolhido por você.
Apareceu tantas vezes na sua navegação,
tantas imagens e textos explicando cada detalhe,
tirando todas as dúvidas, que até parece milagre,
você é o peixe hipnotizado pelas iscas.

Tuas aspirações, frustrações, medos e interesses
foram capturados, e isto tornou
você parte de um processo
que tem uma função, um propósito,
que é explorar teu poder de consumo.

O tempo todo, na Rua W, sua presença é detectada
e seus sinais capturados.
Você é colocado em clusters junto a outros iguais a você.
Lá, sua visão de mundo
e seus valores são reforçados,
sua identidade é validada,
e sua angústia existencial é aplacada
pelo comportamento gregário de iguais.

Você é um lead com perfil psicográfico e socioeconômico
que os mecanismos do sistema
conhecem melhor do que sua própria mãe.
Você é conectado de forma sutil,
encantadora, a uma modernidade fascinante
e a uma sensação de pertencimento aspiracional.

Teu papel é, através de dinâmicas sociais
e comportamentais, produzir riqueza.
Tua recompensa é usufruir da sensação de poder,
de compartilhar as migalhas do que produz.

Você é programado para não ler
e entupido com uma quantidade
avassaladora de informações superficiais
que compromete sua capacidade de interpretar
a realidade e entender o contexto
e os significados de cada evento.

Muitas vezes, a informação e os fatos não se conectam.

Mas não importa,
pensar cansa,
raciocinar angustia,
entender deprime.
Melhor consumir os dados empacotados que reforçam
sua visão de mundo e sua compreensão do que é ser feliz.

Na Rua W você é parte do sistema,
um minúsculo componente,
que no caso de apresentar problemas
pode ser descartado e substituído.

Afinal, ao entrar na Rua W, você deixa de ser uma pessoa:
você é um experimento virtual.

Revisão: Julia Tetzlaff Rosas

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José Tadeu Gobbi

Publicitário, um brasileiro que crê em valores republicanos e num país que valorize honestidade, competência e talento. Bom te ver por aqui.